Oi pai,
Como você tá por aí?
Hoje faz 21 anos da sua partida. Tempo à beça, né? Tanta coisa aconteceu de lá pra cá! Mas faz tempo que eu não te escrevo…
Os últimos anos estão sendo bem difíceis. Estamos vivendo uma pandemia mundial, precisamos nos isolar, usar máscaras, trabalhar de casa, não encontrar pessoas que amamos e mudar um monte de coisas na nossa rotina. Muita gente morreu. E graças a um grupo de negacionistas ambiciosos e com poder, várias pessoas não receberam os cuidados que precisam a tempo de sobreviver (será que você iria apoiar essa gente, pai?). Acho revoltante.
Nesses últimos anos a morte virou um assunto bem mais comum na minha vida do que era lá em 2000, a morte e a saudade. E esses assuntos juntos sempre me lembram você. Vários amigos perderam os pais, avôs, tios… parece que está todo mundo um pouco de luto, triste, tentando encontrar maneiras de digerir tudo isso. Inevitavelmente esse processo me traz de volta para o meu espiral de luto (ainda bem que nesses 21 anos aprendi a ter ferramentas para entrar e sair desse looping).
Naquele dia 8 em outubro de 2000 talvez tenha temido te esquecer um dia. E de fato, algumas coisas eu não lembro mais… como o seu cheiro (lembro que era de um shampoo de caspa, azul, que você usava mas não sei mais qual é), como a sua voz (mas se eu fizer um esforço, lembro da sua risada). Também lá atras eu não sabia que aos poucos essas coisas iam ser menos importantes e eu ia passar a te reconhecer em mim. Você está em mim quando acampo, quando me encanto com o fundo do mar. Você está em mim quando insisto em consertar alguma coisa que quebrou (e quando guardo coisas com essa intenção por mais tempo do que deveria). Você está em mim quando faço churrasco para os meus amigos e eles elogiam. Você está em mim sempre que quero empreender, quando estudo de forma autônoma, quando questiono sobre as múltiplas dimensões da vida. Te reconhecer em mim é umas maneiras que tenho de te sentir presente e de lembrar que você não foi embora por completo.
Tenho tentado dar apoio para esses meus amigos que têm enfrentado a morte pela primeira vez. Me sinto bem fazendo isso (aprendi com um tempo que me traz clareza p os meus próprios desafios), mesmo que seja muito dolorido e assustador ver meus amigos sofrendo. Uma dessas amigas minha, hoje disse que lidar com essa dor é como colocar a mão no fogo, uma hora instintivamente a gente tira a mão porque dói demais. Achei tão forte essa imagem, e explica o porquê a gente fugir de olhar para o que dói profundamente.
Essa conversa me lembrou também que no Harry Potter a Luna explica para o Harry que apenas pessoas que já viram a morte podem ver as os testrálios. Essas criaturas mágicas são cavalos esqueléticos, com asas de morcego, feios e assustadores. Feio e assustador é também o processo de lidar com a morte. Mas os testrálios podem ser domados e ficam gentis, dóceis apoiando os bruxos em suas jornadas. De alguma forma o luto cria uma conexão nova, gentil, de apoio… entre todos que conseguem ver esse bicho estranho. É como se a morte abrisse uma nova dimensão da vida, é como se a gente passasse a ver nuanças que a gente não via antes. Com isso passa a valorizar novas coisas e a temer outras tantas.
Esse ano, pai, pela primeira vez eu olhei para cara da minha própria morte. Sofri um acidente de carro, indo enterrar um desses pais que também partiram. Uma pessoa querida, que sempre cuidou de mim quando estive perto e que, enquanto fazia isso, me chamava despretensiosamente de filha (tenho certeza de que ele não sabia que tinha muito tempo que eu não ouvia um homem me chamar assim).
Me privei de me despedir dele enquanto lidava com as consequências burocráticas do acidente, enquanto cuidava de quem, como eu tinha sobrevivido aquilo ali. Ainda bem, ninguém que estava no carro se machucou fisicamente. Fiquei ouvindo repetidamente que a gente podia ter morrido, tentando tirar a mão daquele fogo que me queimava. E me parece que mais uma dimensão da morte-vida se abriu, a dimensão do “podia ser eu”. Confesso que ainda estou patinando nessa dimensão aí… apenas com fé de que tudo passa, tudo sempre passará…
Pai, 21 anos se passaram e continuo te amando e com saudades.
Fica bem.
Beijos
Lu
P.S. Pai, se encontrar com os pais desses meus amigos por ai, dá um abraço neles, mostra as coisas, ensina para eles o que você já aprendeu ai no outro plano?
Esse texto é dedicado à Stela, Félix, Isis, Ana Elisa e todos que perderam alguém que amam nos últimos meses.