Crônicas do Mundo em Transição #02
Um dia para abastecer a dispensa e temer a morte durante a quarentena.
Domingo, dia 3 de maio, acordamos devagar. É domingo, afinal. Tomamos café lentamente com o que tinha sido pedido no dia anterior, falamos sobre amenidades, planos e medos para a semana, trocando afeto. Enquanto podemos, enquanto nos temos por perto. Minhas companhias começam a se arrumar para ir embora e começo a fazer os planos do dia. Me despeço com a intenção de que nada muito grave aconteça a ponto de antecipar ou adiar nosso reencontro.
Penso que saindo de casa, se vou logo até a minha mãe atendo a necessidade dela de agilidade, mas se não compro nada para mim, depois terei que vir em casa, tomar banho e ir novamente ao mercado. E talvez eu esteja emocionalmente abalada para isso. Se faço compras de uma vez, para mim e para ela, talvez não tenha braço para carregar tudo. Se peço pela internet pode demorar e pode ser mais caro. Tantas variáveis novas e desconhecidas, que gasto um tempo e energia colocando todas elas na mesa. Decidido então, trajeto traçado, começo minha grande epopeia de adquirir mantimentos para mim e para minha mãe, com suspeita de covid.
Primeiro mercado, vou ao que é mais perto para ser mais rápido. Mas que é também o mais caro. Preciso comparar coisas básicas como azeite, sal, e penso se compro comida suficiente para uma semana só ou se me adianto para mais tempo. Essa conta envolve também qual é a minha expectativa e esperança de que a minha mãe melhore rápido. Decido pelo otimismo e compro coisas para cerca de uma semana apas. Acredito nas intenções que colocamos no mundo. Ir ao mercado virou também um exercício de fé.
Depois de limpar e guardar as coisas em casa, sigo para a etapa dois. A casa de minha mãe não fica tão próxima assim e no meio do caminho cai uma chuva daquelas. Me abrigo no ponto de ônibus e escrevo para ela sugerindo um protocolo de chegada. Uma novidade precisar acordar com nossos entes queridos qual é a distância que aceitamos que eles se aproximem e como devem ser nossos processos de higienização ao chegar em casa. Proponho que ela fique no quarto, enquanto eu na sala, para darmos um alô de longe. Ela se chateia com a ideia e diz para eu não ir lá então. Percebo a frustração dela, me conecto com a minha frustração e insisto: estou indo.
A chuva pára e me encaminho para o segundo mercado, que felizmente estava vazio, como eu imaginava. Compro o que ela pediu. Compro também uma bebida que ela gosta, um bolo e uma flor. Em momentos de caos, a gente às vezes esquece de colocar alguns prazeres na lista.
Sigo até a casa dela carregando as compras. Mando mensagem e toco a campainha para avisar que estou entrando. Coloco luva, estou de máscara e óculos. Agradeço a minha experiência do TETO que me ensinou o que é EPI e sua importância. Já dentro do apartamento, limpo cada embalagem com o borrifador de desinfetante e o perfex que tinha levado na bolsa. Vou até a sala e chamo minha mãe. Ela aparece na porta do quarto de camisola e máscara. Me diz que a médica disse que realmente não é seguro para mim ficar ali e me pede para ir embora. Explico algumas coisas das compras, como quem tenta prolongar o tempo permitido da presença. Saio da casa, limpo a maçaneta e vou até a lixeira do prédio. Jogo fora o perfex, as luvas de plástico, os sacos plásticos que estavam comigo. Limpo minha mão com álcool em gel e saio.
Ando pelas ruas desviando de todas as pessoas que cruzam meu caminho. Tenho pensamentos tortuosos de que talvez, algo em mim esteja contaminado com o vírus, talvez eu esteja contaminada, que talvez eu passe para algumas daquelas pessoas, que talvez elas morram por isso. Me dói a ideia e sinto vontade de chorar. Lembro que a máscara molhada perde o efeito, me concentro e seguro o choro. Numa curva, dois adolescentes me pegam desapercebida, passam por mim, desviando, cada um por um lado. Eu travo. Fecho os olhos e intenciono que nada aconteça com eles. Sigo por esse caminho tão conhecido de Botafogo, mas agora traçando trajetos opostos. Se pela minha segurança, enquanto mulher, eu sempre tentei buscar as ruas mais movimentadas, agora penso em quais são as ruas mais desertas que posso passar. Pela segurança das outras pessoas, o perigo agora pode ser eu.
Chego no prédio, tentando encostar no minimo possível nas coisas. Fecho a porta de casa e desmonto. Choro, soluçando, em pé, com a mão na maçaneta ainda. Penso, mais uma vez que não é prudente eu ficar nem mais um minuto com a aquela roupa. Me dispo e entro no banho onde, finalmente, posso chorar em paz até o choro acabar. Nada específico me passa pela cabeça enquanto choro. Apenas revejo todo aquele medo de andar na rua, agora por novos motivos. Revejo a imagem da minha mãe, tão perto e tão distante.
Me permito viver o luto do que fomos e me pergunto, diariamente, o que seremos. Nossas ruas continuarão vazias? Por quanto tempo? Quais dessas novas variáveis serão permanentes, quais que irão passar? Qual desses fatores é a nossa nova realidade e o que é transitório? Quais novas tecnologias serão inventadas para melhoras nossa vida diante disso tudo? Quanto tempo ainda falta para que a minha mãe saia dessa e eu possa abraça-la?
Ainda sem respostas, sem prazos, sem datas acordadas, me conecto com o que há de sagrado em tudo isso, com nossos aprendizados, com a minha gratidão. Estar diante morte, seja ela física ou subjetiva, nos permite fazer melhores escolhas, nos coloca em perspectiva sobre o que de fato é importante. Se a morte é nossa melhor conselheira, me calo para ouvi-la melhor.
“A Morte é nossa eterna companheira — falou Dom Juan, com ar muito sério. — Está sempre à nossa esquerda, à distância de um braço. […] — Como é que alguém pode sentir-se tão importante quando sabe que a morte está no seu encalço? — perguntou ele. […] — O que se deve fazer quando se é impaciente — continuou ele — é virar-se para a esquerda e pedir conselhos à sua morte. Você perderá uma quantidade enorme de mesquinhez se sua morte lhe fizer um gesto, ou se a vir de relance, ou se, ao menos, tiver a sensação de que sua companheira está ali vigiando-o. […] A Morte é a única conselheira sábia que possuímos.” Carlos Castaneda
Diante da morte percebo que o que importa são meus amigos e amores que me trouxeram para perto, que me emprestam abrigo, que enviam reiki, orações, energia para a cura de minha mãe. Eles e elas que se dispuseram a conversar, que mandam corações e abraços virtuais por whatsapp. Sou grata a essa minha rede, maravilhosa, com a qual eu nem sei como viveria esse momento.
Respiro fundo e leio mais uma vez tatuado no meu braço: tudo passa, tudo sempre passará.
grata por você ter lido até o fim. ❤
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