Crônicas do Mundo em Transição #04
Algumas reflexões sobre máscaras, nosso novo equipamento de proteção (ou assessório de moda).
A primeira imagem que lembro de ver na imprensa de alguém usando máscara de proteção, fora de hospitais, durante essa pandemia foi a Presidente da Eslováquia, Zuzana Čaputová. Aquela imagem me chocou porque imediatamente fui transportada para The Handmaid’s Tail. Pelas cores que ela usava, pelo fato de ser uma mulher, pelo cenário. Quando vi essa foto me veio um frio na espinha: será esse nosso destino?
A imagem de alguém usando máscara me remete sempre a violência, opressão, falta de liberdade. Na série, a máscara que é de pano e cobre a boca é usada para silenciar mulheres destinadas a serem apenas encubadoras dos filhos de homens ricos daquela sociedade. Na vida real, no Brasil, pessoas escravizadas eram obrigadas a usar máscara de flandres — um instrumento de tortura que impedia o acesso a própria boca, evitando assim que homens e mulheres comessem terra, e num ato de desespero, tentar se matar. Essas pessoas, vistas como mercadoria, ao tirarem a própria vida geravam prejuízo aos seus senhores. Ou seja, nas minhas referências as máscaras são objetos para proteger esses homens, brancos, ricos e poderosos. E definitivamente, essa não é a minha praia.
Resisti então à comprar uma máscara, à usar uma máscara. Até que fui no mercado e tive uma mini crise de pânico em um corredor cheio. Logo em seguida a empresa que eu trabalho ofereceu para os funcionários máscaras estampadas com logos dos artistas que trabalhamos. Me diverti escolhendo quais estampas eu queria, até perceber que estava me divertindo escolhendo estampas para máscaras de proteção. Quando assim percebi, uma lágrima caiu, de tristeza e medo.
Assim então, o capitalismo transformou uma demanda de proteção em desejo mercadológico e começaram a aparecer máscaras estampadas, lisas, infantil, com estampa étnica, com estampa divertida, combinando com a roupa e uma infinidade de opções. Na rua comecei a reparar padrões: seguranças só usam máscara preta e parecem meio anatômicas ao rosto; na loja pet as funcionárias usam máscara com estampa de bichinho; na padaria a máscara combina com o uniforme marrom e amarelo; na farmácia é branca e lembra a de hospital. Inclusive, recentemente a Damares, nossa ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos lançou um concurso para as crianças: quem fizer a máscara mais divertida e postar nas redes irá ganhar uma tarde com a ministra! Tentador.
Mas não podemos esquecer que esse não é só mais um acessório e, como equipamento de segurança, claramente não estamos sendo educados o suficiente sobre como usá-lo. É bastante comum ver pessoas usando máscara, mas com o nariz de fora — possibilitando que o vírus seja inalado a qualquer momento. Ou usando a máscara, mas colocando a mão na cara, esfregando o olho — o que faria qualquer vírus que tenha ficado bloqueado pelo pano, entrar em contato com os olhos e contaminar a pessoa. Ou até tirando a máscara para se comunicar melhor, fumar um cigarro, beber alguma coisa na rua — que perde o sentido da máscara pelos mesmos motivos anteriores.
A primeira vez que saí de máscara resolvi usar meus óculos, para proteger também meus olhos. Fail. O óculos caíam na cara e para ajeitar, eu precisava colocar a mão perto dos olhos. E dependendo da posição que os colocava, logo embaçavam com a minha respiração, me impossibilitando enxergar qualquer coisa que tivesse a frente. Fora isso, senti muita sede todas as vezes que saí de máscara e, como disse, não dava para tomar nada na rua… então com sede estava, com sede fiquei. Ah, ainda teve as vezes que a máscara caiu do rosto, no meio do mercado por estar apertando demais as minhas orelhas.
Na rua, a cada dia, parece mais comum que as pessoas estejam de máscara e já não tenho a sensação de que já fomos invadidos por extraterrestres, nem que está todo mundo exagerando. O uso das máscaras parece normal e é possível comprar uma com facilidade à cada esquina em bancas de jornal, camelôs, lojas de diferentes tipos. É assustador como a gente se acostuma rápido. Sempre que saio e percebo a normalidade do uso da máscara me pergunto: será assim, daqui em diante, então? Será que tirar a máscara diante de alguém será um ato de confiança? De sensualidade? De amor? Será que esse uso equivocado, ainda sim, faz alguma diferença na propagação do vírus? Será que desenvolveremos novas habilidades de comunicação com os olhos e testa? Será que iremos criar outras maneiras, outros equipamentos, para nos proteger deste e de outros vírus no futuro? Iremos em algum momento parar de usá-las em espaços públicos? Ou iremos incorporá-las e assim como colocamos sapatos todos os dias, iremos usar máscaras todos os dias?
Não conseguimos ainda medir o tamanho do impacto dessa mudança de comportamento em nossas vidas. Mas enquanto isso, não saiam de casa. E se saírem, se protejam, usem máscaras.
grata por você ter lido até o fim. ❤
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