Crônicas do Mundo em Transição #01
Um dia em trânsito na minha jornada de luta contra o covid-19.
Saí de São Paulo no sábado, dia 2 de maio, com destino ao Rio de Janeiro, minha cidade natal. No carro estavam duas amigas, que também estavam indo passar parte da quarentena com suas famílias, e uma cachorrinha. Como nossa ideia era ficar cerca de um mês no Rio, o carro estava com o porta malas cheio. No meio da estrada, chegando já no Rio, fomos paradas pela polícia. Pediram para que mostrássemos o documento do carro alugado, carteira de motorista e quiseram ver as malas. Perguntaram qual era a relação entre nós, o que estávamos indo fazer no Rio e o que fazíamos da vida. Uma gestora de ONG, uma atriz e uma contratada de multinacional. Fomos liberadas, aparentemente depois de ouvir o nome de uma empresa conhecida.
Chegando no Rio, sem muito trânsito, circulamos rapidamente pela cidade para deixar uma de nós em casa e buscar a chave do apartamento que eu ficaria. Meu companheiro, que está morando com os pais na região dos lagos, me emprestou seu apartamento, que fica próximo a casa de minha mãe. Enviou a cópia da chave usando o Blablacar (aplicativo de caronas) e uma amiga buscou a chave, na rodoviária do Rio.
Passamos rapidamente pela praia, de carro. Pessoas correndo, andando de bicicleta. Algumas de máscara, outras sem. Algumas com máscara no queixo, me causando uma certa irritação por ter a consciência de que de nada adianta máscara que não cobre o nariz. Lembro dos artigos que li sobre distância segura com movimento físico e a possibilidade de contaminação mesmo longe, por causa do corredor de ar. Distanciamos o carro da ciclovia. Vejo também uma família na areia, com bebê, cachorro, mãe e pai de máscaras. Questiono se iremos algum dia ensinar nossos filhos a usar máscara assim como os pais ensinam a usar garfo, se limpar, entre outras atividades que para os adultos são triviais. Logo a frente, vejo uma mãe, na portaria do prédio explicando como colocar a máscara corretamente para um menino de uns 3 anos. Penso que futuro distópico e bizarro já está acontecendo.
Reencontramos amigos para pegar a chave do apartamento, a saudade e o medo se misturam. Minha vinda para o Rio tem um foco agora que é poder ajudar a minha mãe, com sintomas de corona vírus, no que for preciso, não posso correr risco. Mantenho as janelas fechadas, aceno e sorrio de longe. Faço piada da situação, com dor no coração. Chave em mãos, agora é me instalar e me preparar para a semana.
Já é quase noite quando chegamos no apartamento que meu companheiro havia deixado a mais de 10 dias. Largamos as malas na porta, ligo registro e painel de luz e começo o protocolo de chegada: tiro roupa e sapatos na porta, sigo para o banho com a cachorra, lavo ela, lavo eu. Me visto e começo a limpar as malas, sapatos objetos menores que estavam a mão, como chave e celular. Não tem papel higiênico, peço pelo rappi com algumas outras coisas mais “emergenciais”. A cã bebê animada com o espaço novo começa a cheirar tudo, começa a querer comer tudo que vê pela frente… decido então varrer a casa, tirar tudo que possa lhe ser interessante do chão. Cola tapete higiênico, coloca comida e água para ela. Chega o rappi, dou gorjeta na mão do homem, já que os aplicativos não são justos. Limpo tudo que chegou com desinfetante. Entre cada uma das atividades lavo às mãos, entre os dedos, por baixo das unhas, em todas as direções. Troco lençol, coloco a roupa na máquina de lavar, tiro roupa da corda, penduro roupa na corda. Nisso se passaram mais de duas horas de limpeza e arrumação, e eu ainda não consegui sentar e descansar. Decidimos pedir um jantar, já que não tenho energia para cozinhar nada. Chega comida, passo desinfetante nas embalagens fechadas, jogo fora o que dá para jogar, sempre me lamentando da quantidade de plástico descartada. Lavo a mão mais uma vez e percebo que ela está ficando ressecada. Jantamos, são nem 22h e o sono está forte.
Me sinto exausta e com a sensação de que não fiz nada. Sempre achei que seria uma péssima dona de casa. Ouvia muito isso da minha mãe, inclusive, quando era displicente com organização e limpeza da casa. Sempre julguei que os trabalhos domésticos não eram tão importantes, que eram fáceis. Do auge do meu privilégio, estava acostumada com coisas como o milagre da roupa limpa, aquele que você joga a roupa no cesto de roupa suja e ela aparece milagrosamente limpa e passada dentro da sua gaveta. Agora, gasto boa parte do meu dia me dedicando a manter as coisas limpas, minimamente organizadas. Preocupada com sujeiras invisíveis, com a possibilidade de alguma delas ter o tal do vírus. Com medo dessa não limpeza ser fatal.
Me julgo exagerada, dramática, neurótica lutando contra um fantasma invisível, numa jornada quixotesca. Será que essa dedicação é minimamente eficaz? Talvez em até 14 dias eu descubra. Ou não.
grata por você ter lido até o fim. ❤
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