5 reflexões sobre hierarquia nas relações não monogâmicas
Quando o debate da não monogamia passa da primeira página, muitos questionamentos surgem sobre prioridades, tempo dispensado em cada relação e hierarquias nas relações.
Existem os que estabelecem a hierarquia de forma clara e combinada, assumindo relacionamentos abertos, onde há um relacionamento principal e “as outras” relações. Existem os que estabelecem a hierarquia dentro de relacionamentos poliafetivos determinando previamente este é o número 1, este o número 2 e assim por diante e existe ainda os que resistem a essas ideias e criticam as hierarquias.
No início da minha trajetória dentro da não monogamia o primeiro arranjo citado era o que eu conhecia, o que me fazia sentido. Mas com o tempo comecei a questionar… Fui apresentada a ideia da anarquia relacional, que propõe a não hierarquização das relações. Isso soava desconfortável e ao mesmo tempo me interessava, por isso, comecei a ler, pensar e discutir o assunto com a minha rede. Queria compartilhar aqui alguns pontos que refleti sobre o assunto.
1. A relação amorosa sob todas as outras
O primeiro ponto é que aprendemos que existem tipos de relações que são mais valiosas que outras: família acima de tudo, namorado é prioridade, etc. Por trás disso, uma ideia de que essas seriam relações especiais, estáveis e que não te abandonariam “por nada”, com uma conexão única, entre outros argumentos que sabemos ser falhos. Por exemplo, maioria das violências contra as mulheres acontece dentro de casa, vinda de companheiros, pais e irmãos. Pessoas que rompem com os padrões sociais de relacionamento desde o princípio da conversa, como a comunidade LGBT, frequentemente são rejeitados pelas suas famílias e acolhidos por esses amigos e amigas, criando novas comunidades afetivas que se apoiam e se cuidam mutuamente. Mas o padrão social diz que a amizade deve sempre ficar em último plano nessa hierarquia, inclusive com expressões corriqueiras como elas são só amigas. Como se amizade fosse pouco, menos importante.
Quando falo sobre não hierarquização das relações estou falando que todas as relações têm seu valor. Mas esse valor não é dado por títulos ou rótulos que a sociedade ou nós colocamos.
2. Poder, subordinação e obrigatoriedade
O significado de hierarquia está conectado a poder, subordinação e obrigatoriedade. Sendo assim, se uma relação está hierarquicamente acima da outra ela tem o poder de interferir e tomar decisões sobre essas relações que estão abaixo.
É quando uma mulher proíbe o namorado de falar com uma outra mulher porque se sente insegura, por exemplo. Ou quando um homem decide que a esposa não irá mais frequentar eventos da família dela porque ele não gosta. Em definitivo, esse ponto é o princípio de uma relação tóxica e abusiva. Porém, bem comum em diversas relações, inclusive as retratadas em músicas, novelas, filmes… o que faz com que a gente acredite facilmente que isso é normal, que é o certo.
A hierarquia traz também uma obrigatoriedade da prioridade. Não há liberdade para uma negociação, uma mudança de desejo, de planos. Há que se seguir a ordem, é mandatório e muitas vezes silencioso.
O que entendo dentro da ideia da anarquia relacional é que somos pessoas livres, que fazemos nossas escolhas e lidamos com as consequências delas. Uma relação não é mais ou menos importante que a outra. Ninguém pode decidir com quem iremos nos relacionar ou como ou quanto ou quando.
Nenhum terceiro decidirá como ocuparemos o nosso tempo ou quanto de energia colocaremos em cada relação. Porque o poder de decisão não está terceirizado. Isso cria espaço para que possamos ser mais honestos com os nossos desejos e suas transformações.
3. Abraçar a instabilidade, a fluidez
Parte da fantasia da monogamia inclui a estabilidade irrestrita e fantasiosa da relação. O casamento prevê o “felizes para sempre”, afinal “o que Deus uniu, o homem não separa” e apenas a morte pode separar um casamento religioso. Mas a realidade, sabemos, não é bem assim. Todo relacionamento tem ciclos de mais afastamento e mais aproximação, momentos de mais tesão e de mais frieza. Somos parte da natureza, ela tem seus ciclos e nós, enquanto indivíduos, também — natural então que nossas relações passem por isso. A vida é instável e por mais que a gente tente se enganar e criar estruturas para enquadrá-la a realidade não é essa.
Quando você se relaciona por algum período de tempo com mais de uma pessoa é comum que em algum momento você esteja mais próximo de uma pessoa e em outro momento, mais próximo de outra. Quando paramos de competir uns com os outros entendemos que o valor à relação é maior (e mais complexo) do que se fulano saiu mais essa semana com ciclano do que com beltrano. Faz parte do fluxo da vida, das dinâmicas das relações. Se a ausência de um companheiro ou companheira te incomoda, a ideia é falar sim sobre isso, mas sem colocar como parâmetro de comparação a relação com o outro.
Isso não significa que em algum momento você possa estar priorizando uma relação. Seja porque a pessoa está passando por um momento delicado como uma doença, um desafio profissional em que está precisando de apoio ou uma gravidez. A ideia aqui é que essa prioridade seja uma decisão autônoma e feita de coração e não por obrigação.
4. Existem profundidades e dinâmicas diferentes nas relações (e tudo bem)
Quando falamos sobre a inexistência de hierarquia, não queremos dizer que todas as relações tem a mesma profundidade. É claro que uma relação que você vive à 8 anos é diferente de uma relação que começou na semana passada. Existem relações em que que as pessoas se envolvem intensamente, compartilhando medos, inseguranças e tem conversas profundas. Existem relacionamentos que as pessoas se apoiam no dia a dia, mas não falam sobre suas subjetividades. Não há certo, não há errado, não há cartilha. Há acordos e dinâmicas estabelecidas nas trocas de cada grupo de indivíduos. Visualmente é como se houvesse um relevo — como uma cadeia de montanhas, que cada uma tem sua altura, seu vale, todos são únicos e tem seu desenho específico e estão lado a lado, e não um em cima do outro, como a ideia de hierarquia.
A não monogamia abre espaço para sair da receita do bolo e criar algo único em cada relação. Num geral, a gente aprende nos filmes, contos de fadas e na família como devem ser as relações. Aprendemos modelos a seguir e ficamos cheios de certeza, cheios de “tem que”. A não monogamia é uma oportunidade à autenticidade.
5. Respeito e ética
Muita gente confunde a não monogamia com putaria e oba oba. Ficar com quem quiser ficar, quando quer ficar e não se importar nem um pouco com o que os outros sentem é vida de solteiro/a e irresponsável. Muita gente usa do discurso do amor livre também para não se comprometer com ninguém, e alguns ainda fazem exigências para as outras pessoas, mantendo a liberdade apenas para si.
É bem diferente do que é proposto dentro de relacionamentos não monogâmicos. É importante aqui que haja responsabilidade afetiva — ou seja, ter conversas francas sobre seus desejos, sobre suas intenções, se responsabilizar por elas, sem entrar em jogos para machucar os outros. É respeitar também o seu desejo e o desejo do outro/a, tentando chegar em acordos e meios do caminho. Claro que só é possível ter conversas francas sobre suas necessidades e desejos se você se conhece, se escuta e faz esse trabalho de auto investigação.
Ouvi uma vez de um relacionamento meu que ele me amava e que por isso faria o que fosse possível pra ele para enriquecer a minha vida. O possível para ele, significa que ele não iria se machucar para atender às minhas demandas. Que quando o fizesse seria de inteiro coração. Acho isso lindo. Muitas vezes quando a gente fala sobre respeito nas relações a gente pensa muito em respeitar o outro e pouco em nos respeitar, nossos limites, nossos desejos. Se cedemos muito pelo outro em algum momento a conta chega, cansa e paramos de querer fazer as coisas pelo outro. É desgastante. Ou ao contrário, respeitamos apenas os nossos desejos e necessidades de um jeito bem egocêntrico, sem procurar considerar as necessidades do outro. A busca é pelo meio termo.
E vocês o que acham sobre esses pontos? Já viveram relacionamentos não monogâmicos simultâneos e sem hierarquias? De que forma isso se deu?