20 anos
Quando Harry Potter chega a escola de magia, em seu quinto ano, no livro Harry Potter e a Ordem de Fênix ele vê pela primeira vez que as carruagens, que levam os alunos da estação até a escola de bruxaria são puxadas por criaturas estranhas. Ele aponta para Rony as criaturas, mas seu amigo não consegue vê-las. Luna tenta tranquilizar Harry afirmando que ela também consegue ver o bando de testrálios e que ele é tão são quanto ela. Nada confortável com essa afirmação, Harry busca saber porque ele consegue ver aqueles animais e descobre que apenas pessoas que presenciaram a morte e lidaram com essa dor é que conseguem ver os bichos.
Quando li essa passagem lá perto dos meus 15 anos muitas coisas fizeram sentido. Perdi meu pai com 10 anos e parece que a partir daquele momento a lente que usava para ver o mundo mudou. Mesmo tão nova, sentia que conseguia ver coisas que meu amigos não viam. E que quando falava sobre isso, ainda precisava lidar com os olhares esquisitos deles em minha direção, com a falta do que dizer ou com os comentários sem noção da parte deles. Por acaso (ou não), foi também uma amiga Luna que me deu a mão e me disse via o mundo com as mesmas lentes que eu. Ela também perdeu o pai, poucos anos depois de mim, e lidar com o luto dela e da família dela foi essencial no meu espiral de lidar com o meu.
No desenho do Rei Leão, Mufasa conta a Simba que as estrelas são os reis do passado olhando por nós. Após a morte de seu pai, Simba tem certeza de que ele também virou estrela. Durante boa parte da minha adolescência sempre que sentia falta do meu pai olhava para as estrelas buscando ele. Por acaso (ou não), muitas vezes que fazia pedidos para elas, pensando nele, meus pedidos eram atendidos.
Criei assim uma intimidade em olhar para o céu. Buscando essa proteção, esse cuidado que me faltava na ausência presente de meu pai. Passei a usar estrelas em brincos, anéis, roupas, decoração do meu quarto, desenhar em qualquer papel que via pela frente. Fiquei conhecida entre meus amigos e familiares por gostar muito de estrelas. Vejo hoje que esse foi meu jeitinho de ter um simbólico do meu pai sempre por perto de poder falar sobre isso sem atrair os olhares de pena e desconforto. A morte é mesmo confusa e a gente vai tentando lidar como consegue, em cada etapa da vida.
Hoje fazem 20 anos que meu pai morreu. Vinte fucking anos.
Uma vez ouvi que eu nunca superei a morte de meu pai. Na hora atordoada não respondi, mas fiquei pensando o que significaria superar a morte de alguém. Não pensar nunca mais nele? Nunca mais chorar pensando nele? Nunca mais ficar triste, pela ausência tão presente? Não sei se isso é possível.
Eu não parei a minha vida naquele 8 de outubro de 2000. Depois disso me formei tês vezes na escola, na faculdade, no mestrado. Trabalhei em diferentes lugares, em diferentes funções, com desafios diferentes. Me relacionei com varias pessoas. Fiz muitas novas amizades. E até reencontrei na vida amigos que conheceram ele, lá atras. Tomei porres. Fiz viagens incríveis. Tive muito medo e fui corajosa diversas vezes. Errei tantas outras. E ele não esteve ao meu lado fisicamente em nenhum desses momentos. Eu não fui menos feliz por isso. Eu não sou menos feliz por isso. Perder meu pai aos dez anos é uma das minhas histórias, somente uma parte de mim.
Em terapia essa semana, ouvi a história de uma igreja no centro de Hamburgo, que é hoje o memorial de Snt Nikolai. É uma ruína de um espaço que foi destruído na invasão nazista à cidade durante a segunda guerra mundial. De lá para cá a cidade cresceu, foi modernizada, os estragos em outros espaços foram reparados… Mas esse memorial foi preservado. Ele é uma ilha do passado no meio do tempo presente e está ali para lembrar daquela dor da guerra, para lembrar da história vivida, de quem sobreviveu, de uma história que não pode ser apagada.
Olhar para a morte do meu pai é parecido. É uma ilha, no meio do tempo presente, que me lembra o passado. É um parte de mim que às vezes encontro com alegria, com alivio. Que às vezes encontro com tristeza e saudade. Que às vezes encontro com gratidão. Afinal, em um país que tantos homens abandonam seus filhos por escolha, meu pai escolheu ser pai por um década inteirinha. Mas de qualquer forma é um processo em espiral, cíclico.
Eu fico esperando o dia que vou ter chorado tudo. Que vou secar minhas lágrimas sobre esse assunto. Eu também fico esperando que o luto cesse, para sempre. Mas o para sempre, sempre acaba. Me julgo de boba de me importar com datas. O tempo é relativo e vinte anos, é só mais um ano. Não importa se é uma data redonda. Mas meu corpo diz diferente e precisa desaguar.
Então que escorram as palavras, as memórias, as saudades, as águas. Tenho fé que em breve essa parte do espiral do luto vai passar de novo, mais uma vez.